O entalhe do nordeste: Mestre Noza e a xilogravura popular

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Por: Pedro Perera

Aqui temos o caso de um multicriador cuja própria história de vida se confunde com os rumos que tomou a xilogravura popular nordestina no Brasil e no mundo. Inocêncio Miguel da Costa Nick, cearense, mais conhecido por Mestre Noza, em sua longa trajetória de quase 90 anos de vida, trabalhou as artes do entalhe e da gravação na madeira de modo completamente singular e genial. Sua figura adquire relevância quando Noza decide tornar-se um “Imaginário”, é a partir de então que sua relação com a história da arte popular nordestina ganha destaque, em função de sua vasta produção em escultura e xilogravura. Na BBM, temos à nossa disposição algumas das obras em xilo mais relevantes e reconhecidas do artista para tentar entendê-lo: “A Vida de Lampião”, “A Via Sacra” e “Os 12 Apóstolos”.

O Surgimento da Xilogravura

Para compreendermos o amplo significado de Mestre Noza para as artes populares do Nordeste vale a pena entender um pouco mais sobre uma das artes que o consagrou: a xilogravura. Seu surgimento no Brasil remonta aos idos do período colonial. A técnica foi importada da Europa para ser empregada em diversos usos, desde estamparias em tecidos até a impressão de rótulos para aguardente. Porém, no caso do Nordeste, é no início do século XX que há uma primeira popularização da gravura, através dos jornais da época, como em O Mossoroense – o jornal paraibano mais antigo do interior nordestino. Tem maior destaque ainda a Literatura de Cordel, que rapidamente se populariza entre grande parte das camadas de baixo letramento da época e que contará com a xilogravura para a ilustração de suas capas, tornando as gravuras ainda mais conhecidas.

Tanto a história da xilogravura como a de seus criadores apresentam dois grandes momentos específicos: no primeiro, que dura até meados do século XX os xilógrafos são enquadrados na categoria de artesãos e sua produção é destinada a vários segmentos comerciais; no segundo momento, a partir de 1950, dá-se a construção do estatuto de artista que vai revestir esses nomes. Isso ocorre por meio de um processo de construção e transcendência da xilogravura como obra de arte em si e Mestre Noza é um artista que, por sua longevidade e por sua ampla produção, vai vivenciar essa mudança de experiências como nenhum outro. Ele vai, sobretudo, contribuir para essa transformação como nenhum outro fizer.  

Perscrutando Noza

A trajetória de Mestre Noza como artista ganha seu primeiro impulso com a chegada no Ceará de um artista italiano chamado Agostini, contratado para esculpir as portas da Igreja da Matriz de Juazeiro do Norte. O entalhador estabelece um ateliê onde Mestre Noza e diversos artistas vão estudar as artes na madeira na década de 1920. Sua produção inicial como criador já denota uma forte ligação com a religiosidade, pois Noza começa produzindo santeiros, estátuas de santos em madeira muito desejadas pelos romeiros de Padre Cícero. Produziu também para encomendas de rótulos de bebidas e cigarros, porém é a xilogravura em formato de álbum que irá consagrá-lo já em vida como um grande artista.

O que está por trás de suas obras que despertaram o encanto de pessoas em vários cantos do mundo? Esperamos que ao longo do texto essa resposta seja dada, e para tanto, a nossa investigação conta com os 3 conjuntos mais representativos da obra de xilogravura do Mestre Noza, popularizados mundialmente em diversas exposições pelo mundo e que fazem parte do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin: “a Via Sacra” que representa o caminho dos 14 passos da condenação de Jesus até a sua crucificação perante Pôncio Pilatos, “a Vida de Lampião” representando a vida do aclamado cangaceiro até sua morte e “os Doze Apóstolos” representando os evangelistas de Jesus, todos disponíveis para consulta em álbuns de edição de luxo no acervo da biblioteca.

As obras manifestam um artista múltiplo, sendo impossível enquadrá-lo em um único tipo. Diferente da ilustração para cordel, que busca condensar toda a narrativa numa imagem de capa, os álbuns de Mestre Noza, tais como “a Via Sacra” ou “a Vida de Lampião”, apresentam um esforço maior de composição e trazem narrativas particulares inteiras, cujo sentido se dá no conjunto das xilogravuras. Apesar da rusticidade do traço, essas obras contêm elementos muito elucidativos de um artista que representa aquilo que permeia seu imaginário.

O modo característico de feitura de Noza é símbolo de um contexto sociocultural onde as fronteiras entre a vida mundana e a religião são difusas e fazem parte de uma mesma prática existencial. A extensa obra de caráter religioso de Noza atesta isso, tal como a série de quadros representando os evangelistas de Jesus e a via sacra, que trata de um ritual imortalizado em inúmeros eventos religiosos que se repetem periodicamente até os nossos dias, em um esforço para reproduzir de diversas formas ritualizadas o caminho sofrido de Jesus até sua crucificação. Mestre Noza não é um mero retratista da sociedade, dos costumes e da religião, na verdade, ele compõe suas obras com elementos moralizantes e reveste suas xilos de uma lógica propriamente sua. Um exemplo é o modo como o mestre representa Jesus, pois sua rusticidade permite que o autor faça uma reconstrução própria de Cristo, mesclando elementos sacros com a realidade em que vivia.

Como foi bem assinalado por Franklin Jeová, Ariano Suassuna diria que para esses artistas de xilogravura, a realidade é apenas um ponto de partida a ser transfigurada pelo poético no entalhe da madeira, num processo que se manifesta justamente no estilo rústico desprovido de perspectiva, com figuras achatadas e contornos fortes, um estilo que permite ao xilógrafo mesclar elementos e realidades de maneira ilimitada, afinal é a imaginação que os move.  

A obra dedicada a Lampião, que sem dúvida expressa a relevância das personagens e do cenário do interior nordestino para Mestre Noza é outro exemplo muito singular que nos permite entender a construção daquilo que se pode chamar de um nordeste fantástico. Concebida através de paisagens, personagens e seus feitos, Mestre Noza narra a história de Lampião em 20 quadros. “A Vida de Lampião” não trata somente de uma sucessão de fatos, mostra também as múltiplas facetas que compõem o cangaceiro e expressam uma série de reviravoltas que caracterizam a figura de Virgulino.

Por meio das fugas do cangaceiro no sertão, o enfrentamento com as autoridades, sua decapitação e a sua suposta ida ao inferno, nasce, das mãos do mestre, um cangaceiro anti-herói de modo perfeitamente original, na qual a personagem pode ser tanto humana e carnal (como no quadro “15 – Lampiao Duente”), quanto mítica e transcendental, como é o caso de “20 – Lampiao Inferno”. Essa oscilação pode ser entendida como reflexo do próprio modo como o imaginário de Noza desvirtua a realidade concreta. Essa singularidade é o ponto chave para entender o significado de Mestre Noza para a arte.

Se por um lado a denominada arte popular traz consigo a potência infinita de criação, refletida nas obras de inúmeros artistas xilógrafos, por outro, o Nordeste enquanto ideia, realidade ou cenário traz em si todo um universo a ser perscrutado. Tendo isso em mente, podemos afirmar que a Imburana, principal madeira utilizada por Noza para criação, foi a opção que rendeu engenhosas e fantásticas investigações nesse mundo popular nordestino.

Referências

BRENNAND, Francisco. “Doze gravadores populares do Nordeste.” Recife: Guariba, 1974.  

FRANKLIN, Jeová. “Xilogravura popular na literatura de cordel.” Brasília: LGE, 2007.

NOZA, Mestre. Os doze apóstolos: gravado por Mestre Noza, Juazeiro, CE, Brasil, 1962. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFCE, 1962.

NOZA, Mestre. Via Sacra: xilogravuras populares; texto: Maria Eugenia Franco. São Paulo: Julio. Pacello, 1967.  

NOZA, Mestre. Vida de Lampião por Mestre Noza. São Paulo: Julio Pacello (sem data).

RAMOS, Everardo.”Do mercado ao museu: a legitimação artística da gravura popular.” In: II Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, Goiânia, 2009.

Pedro Perera é graduando em História pela FFLCH-USP.

Curadoria

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