Grã-finos em São Paulo – o jornalismo literário de Joel Silveira

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Perguntaram a Joel Silveira certa vez quem ele nunca levaria para uma ilha deserta onde tivesse que passar o resto da vida. A resposta foi rápida: João Gilberto, e seu violãozinho. Aliás, melhor mesmo seria deixá-lo na ilha, sem o violão, disse ele. Foi essa língua ferina que rendeu a Joel Silveira o apelido de “víbora”, que o acompanhou até o fim da vida. Sergipano, mudou-se para o Rio de Janeiro aos 19 anos, em 1937, para estudar direito, empreitada que não durou muito – abandonou a faculdade, que já não frequentava muito, ainda no segundo ano. Mas a mudança para o Rio vingou e foi ali que Joel Silveira começou e consolidou sua carreira como repórter. Ainda na faculdade, começou a trabalhar na revista semanal literária Dom Casmurro e depois no periódico Diretrizes, ambas publicações de esquerda, a partir de onde o escritor fez contatos com nomes como Assis Chateaubriand, que o chamou para escrever para os Diários Associados e posteriormente para ser correspondente de guerra, viajando com a Força Expedicionária Brasileira, que lutou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

Joel Silveira é considerado hoje um dos expoentes do “Novo Jornalismo” brasileiro, movimento que surgiu nos Estados Unidos nos anos 60 – com nomes como Truman Capote, Gay Talese e Norman Mailer – propondo reportagens de fôlego escritas a partir de pesquisas extensas e com linguagem que mais se aproximava da literatura do que do jornalismo – por isso o movimento é conhecido também como “jornalismo literário”. Embora o gênero tenha se consolidado apenas na segunda metade do séc. XX, em muitas reportagens de Joel Silveira escritas na década de 40 já se nota a força da linguagem literária na sua produção, como é o caso de “1002a noite na Avenida Paulista”, reportagem de um casamento da família Matarazzo que consagrou o escritor no meio jornalístico.

É esse tom literário que marca as reportagens reunidas no livro “Grã-finos em São Paulo e outras notícias do Brasil”, coletânea de textos escritos pelo jornalista entre 1944 e 1945, publicada em 1945. Os textos escolhidos, que incluem entrevistas com figuras tão diferentes entre si quanto podem ser os cangaceiros do bando de Lampião presos em Salvador e Monteiro Lobato, são um retrato da sensibilidade do escritor, que transita entre extremidades da sociedade brasileira com a mesma facilidade com que escreve críticas literárias.

gra-finos-em-spAlém de textos sobre as elites paulistana e carioca, que se tornaram clássicos do gênero, o livro traz reportagens sobre populações miseráveis em vários pontos do Brasil; notícias de situações que parecem não ter nada em comum entre si, mas acabam por descrever com maestria o cenário de desigualdade no Brasil. Nas palavras do próprio autor  os “depoimentos e reportagens aqui reunidas servem como um retrato objetivo de um certo período da vida brasileira. São, particularmente, um instantâneo das condições de existência das classes mais pobres do país, identicamente exploradas no Norte, Centro e Sul.”. A descrição é bastante precisa, e esse instantâneo das classes miseráveis, que já é forte em cada reportagem, ganha intensidade quando são colocadas lado a lado, por exemplo, as condições de exploração dos pescadores do Ceará e as dos mineiros do Rio Grande do Sul.

Pode parecer que a preocupação com situações de extrema pobreza não seria condizente com o escritor que retratava grandes encontros das famílias mais ricas do país, mas as relações que Joel Silveira estabelece entre esses dois polos é justamente um dos grandes méritos do repórter. Suas reportagens sobre eventos da elite nunca poderiam ser confundidas com colunas sociais, porque a língua ferina com que tratava famosos sobrenomes da classe alta não era gratuita, mas carregada de crítica social. É o caso da famosa reportagem “1002a Noite na Avenida Paulista”, em que o jornalista relata o suntuoso casamento da filha do Conde Matarazzo, mas termina com uma notícia sobre o humilde casamento de dois operários: “Lua-de-mel, sim, mas depois das poderosas chaminés da Matarazzo gritarem o fim do segundo expediente do dia.”.

É essa mesma postura crítica que norteia “Rios de miséria”, reportagem sobre a Fundação Gafrée-Guinle, em que a história do hospital é permeada pelas histórias de operários, mulheres e crianças que, dependentes de seu atendimento, se preocupam com a ameaça de seu fechamento iminente. Ao mesmo tempo em que reconhece a importância do hospital, por ocasião de seu fechamento, Joel Silveira não economiza ironias sobre os milionários Gafrée e Guinle: “Tudo nesta vida, sabem-no os homens de negócios, sabem-no particularmente os homens que já enriqueceram – é uma questão de dar e receber. Há vinte anos que o milionário Guilherme Guinle vem dando dinheiro para a Fundação. É como se estivesse dando dinheiro a Deus, que ao Senhor pertencem os pobres, os desgraçados, os infelizes. Um jogo simples: muita coisa também tem dado Deus aos Guinle, inteligência, fortuna, sagacidade, as Docas de Santos, ilhas e hotéis. O débito do dr. Guilherme Guinle para com Deus é muito grande, um débito que não pode ser saldado apenas com vinte anos de injeções de bismuto, de ataduras, de exames de laboratório – e tudo isso não vem direto do coração do milionário, tudo isso passa, antes, pelos caminhos de sua contabilidade. Deus não gosta dessa caridade hollerith.”.

A elite, que não escapava da crítica nem quando parecia inquestiovável, também não era esquecida quando Joel Silveira ia de Norte a Sul conhecendo populações pobres. Pois suas reportagens não são só sobre miséria, mas sobre exploração. Em “A lama é negócio”, o tom já é dado no título. A história dos moradores da Vila Barca, ocupação que cresce a partir de uma barca encalhada na lama da costa de Belém, é contada sem perder de vista a responsabilidade da elite pelo agravamento da situação, quando os habitantes, já imersos em condições completamente inóspitas, sujeitos a todo tipo de endemia, entre tantos outros problemas, passam a ser obrigados a pagar por isso. Silveira não passa em branco pelos “preços imorais” que os novos senhores, que aos poucos compram todos os casebres construídos ali, cobram pelos barracões, divididos em duas famílias inteiras, sempre sob ameaça de aumento.

Esses senhores são como os que exploram os pescadores do Ceará, que passam dias em alto mar para depois ter sua pesca submetida às condições de compra que bem entenderem seus patrões, os donos da infraestrutura (jangadas, redes e, principalmente, frigoríficos). Essa é a história contada na reportagem “A praga sobre o mar”, em que Joel Silveira conta como os pescadores, quando chegam exaustos de volta à praia, não têm como guardar o peixe e vender depois diretamente ao consumidor, sendo obrigados, assim, a vender para intermediários. Nas palavras do jornalista, “o preço do intermediário ao jangadeiro é irrisório, mas alto é o preço do consumidor ao intermediário – e esta é uma lei que já se tornou clássica na economia nacional.”

E a exploração continua, atravessando o país, com os mineiros de São Jerônimo, no Rio Grande do Sul, retratados na reportagem “A noite debaixo do chão”. Como se vê no fim dessa reportagem, a víbora, em meio a tanta crítica, tem seus momentos de otimismo: “Deixo os homens de São Jerônimo atolados na noite grossa, cegos pela sílica, torturados, famintos, doentes, afundados na supermiséria – mas deixo-os invencíveis, sei bem, pois que seus peitos estão acesos de esperanças. Deixo também o ‘Cadem’ (Consórcio Administrador de Empresas de Mineração) nadando em sua fortuna. A fortuna também é um mar grosso, um mar que tem seu princípio lá embaixo, na noite das galerias. São muitos os segredos do ‘Cadem’, segredos escuros, e jamais poderemos romper a escuridão munidos apenas, como estamos, de rústicas lâmpadas de carbureto. Também não podemos desperdiçar carbureto, sabemos, pois que ele é descontado em nossos salários… A solução é esperar pelos dias futuros, que a lógica das coisas tornará mais claros”.

Sua previsão para o futuro, porém, é equivocadamente otimista. Engana-se ao pensar que escreve “um retrato objetivo de um certo período da vida brasileira”. Parece que, 70 anos depois, a elite da mansão Matarazzo continua a mesma elite, agora vivendo nos Jardins ou na Barra da Tijuca, assim como as populações miseráveis continuam quase as mesmas, exploradas, por exemplo, em confecções no centro de São Paulo ou no extrativismo financiado pela indústria cosmética na região amazônica. Infelizmente, o que mais salta aos olhos na leitura das reportagens de Joel Silveira atualmente não é tanto sua linguagem ou seu humor, mas principalmente a impressionante atualidade de seus relatos.

 

Maria

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